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quarta-feira, março 16, 2005

Um Deus sem clichês 


Não que eu seja fã de novela – na verdade eu tenho certa ojeriza intelectual a esse tipo de manifestação da nossa cultura – mas como brasileiro, é praticamente inevitável não ter pelo menos uma noção do que se passa na TV em horário nobre. É costume nosso, ainda mais quando a novela está nas suas últimas semanas, comentar e apelidar os outros com os assuntos abordados, daí então é fácil ficar por dentro de tudo.

Também não precisa ser nenhum noveleiro ou crítico televisivo para perceber que todas acabam iguais. Pior do que isso somente o clichê-final para os bandidos. Como numa expiação aos pecados cometidos ao longo de mais de duzentos capítulos, o bandido sempre morre de modo trágico cenas antes do fim.

E o público aplaude. Pede isso.

Caso se faça alguma pesquisa nessa época, de fim de novela, dá para perceber o filete amargo de vingança molhando a língua da massa enfurecida. O ser humano é assim, punitivo. Acredita que no final o castigo deve visitar o malfeitor.

Graças a Deus, que com Deus as coisas são diferentes. O problema é que os seres humanos, mesmo aqueles que dizem acreditar em Deus, na sua maioria, trazem na boca esse gosto amargo, essa sede por punição. E de certo modo, caminhar de forma reta e imaculada – pelo menos assim imaginam – dá a esses, certo conforto, uma segurança, pois acreditam que Deus gosta de clichês, portanto, no final, os bonzinhos estarão a salvos contemplando a desgraça dos bandidos. “Viu só, quem mandou ser mau?”

Mas não, Deus na verdade abomina clichês – penso eu – e no final, quem se salva não sãos os personagens bonzinhos da trama. Não que Deus tenho uma certa queda pelos anti-heróis, mas heroicamente, um só morreu – a saber Jesus – dando a todos os outros, bons ou maus, a oportunidade de se salvarem no fim, ou pelo menos, um pouco antes do fim.

E os mocinhos? Bem, nesse caso, os mocinhos não são tão bons assim, pois se acham auto-suficientes, a ponto de sonharem em ver suas satisfações realizadas quando os bandidos forem pegos de jeito, recebendo em si o castigo pela culpa – como se Deus fosse um sátiro.

Mas para Deus não existe nem bons e nem maus, apenas existe aqueles que crêem e os que não crêem na Graça, no favor imerecido. E por que os mocinhos não crêem de todo na Graça? Ora, para se crer na Graça, ou seja que Deus entregou o Seu Filho Unigênito como expiação para o pecado de todos, afim de salvar todo aquele que nEle cresse, é algo solitário e até perigoso, pois é nadar contra a corrente, é se entregar, é estar sozinho, sem nada ao seu redor que lhe dê garantia alguma. Crer é viver da fé e viver da fé é viver da esperança, que tudo aquilo no que se crer, se cumprirá.

Viver da fé é de certo modo viver no abandono. No abandono, longe da auto-suficiência, longe das próprias obras, longe daquilo que se deseja ser para ter. Muitos crêem na Graça enquanto não cometerem pecado algum, como se a Graça se referisse apenas a nossa vida até o encontro com Jesus, por assim dizer. Depois de Jesus, sem pecados, caso contrário o fogo do inferno arderá na sua pele.

É assim que nascem as convenções, as doutrinas, como se a Graça precisasse de uma mãozinha. Como se o sacrifício de Jesus fosse parcial.

A verdade é que poucos entendem o que é a Graça. E por que isso acontece?

Porque o homem tem medo de se assumir como é. Porque a fé, o ato de crer, é uma queda livre; é estar na porta de uma aeronave com um pára-quedas nas costas e se lançar. Crer é correr os riscos de romper com tratados, com fórmulas, com pacotes. Crer é estar sozinho, destacado da multidão, ainda que a multidão seja de crentes. Crer é se assumir como dependente total de Deus, não no sentido apenas de suprimentos materiais, como carro, dinheiro ou imóveis, mas é ser dependente de Deus no que diz respeito à salvação, crendo que se é salvo apenas por meio de Jesus e que nada do que se faça mudará isso.

Mas muitos precisam de um talismã, um bezerro de ouro, para continuar crendo e por isso se esforçam para ser santos, contribuindo assim para a manutenção da salvação, como se pudéssemos ser fiadores da própria salvação concedida a nós por Deus através de Cristo Jesus na Cruz. Desse modo, se os templos não estão cheios domingo à noite, imaginam, alguma coisa deve estar errada. E se são acometidos de alguma doença, pensam, que Deus estar de mau humor. Usam duma fé que só funciona quando tudo vai bem.

Em Cristo Jesus não estamos mais debaixo da maldição da lei. A lei como diz Paulo em cartas aos Gálatas, nos serviu de aio, ou seja, de tutora, até que nós alcançássemos a maioridade, ou seja, estávamos debaixo da lei até Cristo Jesus, a nossa maioridade, a nossa libertação, chegar. E Ele chegou nos fazendo livres. Livres para viver e para entender que as coisas acontecem, que a chuva cai sobre justos e ímpios e Deus não é pior e nem melhor por isso, simplesmente, Ele é Deus.

O que pode se dizer então é o que o pecado não tem mais poder sobre nós para condenação, ainda que pequemos, pois Jesus rasgou todo escrito de dívida que havia contra nós, nos perdoou e nos justificou.

Então somos livres para pecar?

De modo algum, como diria Paulo. Em Cristo Jesus, toda lei se resume em, “amarás a Deus sobre todas as coisas e amarás o teu próximo como a ti mesmo”, desse modo, o Senhor cumpre Sua Palavra, inscrevendo em nossos corações a Sua lei perpetua que é o amor. E “o amor não sente inveja, não deseja o mal, não se envaidece... e ainda que meu corpo fosse entregue para ser queimado, sem amor de nada valeria.” Na Graça, o que existe é o amar ao próximo como a nós mesmos e a amar ao próximo como a nós mesmos é fazer ao outro aquilo que nós queremos que seja feito a nós – “...perdoai as nossas dívidas, assim como temos perdoado os nossos devedores”. Em Cristo Jesus, quando vier o que é perfeito, tudo irá desaparecer, exceto o amor.

Dessa forma, toda lei nos tempos da Graça é um retrocesso, um clichê há muito posto por terra, mas ainda muito usado para manipular a audiência.


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